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João Ubaldo: "Ponte de Itaparica não é prioridade"

Nós temos uma realidade brasileira de pobreza e exclusão. Itaparica vai se transformar numa espécie de subúrbio de Salvador e, provavelmente, favelizada. Por Cláudio Leal

Originalmente publicado no Terra Magazine (26/03/2009), disponível apenas através do Wayback Machine.

De contornos ficcionais no imaginário baiano, o projeto da megaponte Salvador-Ilha de Itaparica (situada a 14 quilômetros da capital) divide as mesas da Bahia. Orçada em R$ 1,5 bilhão e incluída no pacote Copa 2014, a obra monumental foi apresentada pelo governador Jaques Wagner (PT) ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e à ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Lula prometeu "pensar".

Nascido em Itaparica, o escritor João Ubaldo Ribeiro, 68 anos, integrou a Ilha à história da literatura brasileira, em romances como "Viva o povo brasileiro", "O sorriso do lagarto" e "O feitiço da Ilha do Pavão". Nos últimos anos, assumiu a defesa do paraíso baiano, que convive com o crescimento da violência e a degradação urbana. Em entrevista a Terra Magazine, João Ubaldo avalia que o projeto da ponte não é prioritário e, certamente, nem sairá das pranchetas:

- Essa ponte nunca vai ser construída (...) A prioridade de uma ponte dessa, diante do acúmulo das necessidades do País, é baixíssima.

Na apresentação do projeto, esboçado há cerca de 30 anos pela construtora baiana Noberto Odebrecht, Jaques Wagner garantiu que pretende iniciar "conversas com as prefeituras de Itaparica e Vera Cruz, e também com as comunidades locais", para estabelecer "um plano diretor que atenda às transformações que a nova ponte provocará na Ilha de Itaparica". Segundo o romancista, se a obra for levada adiante, sua terra natal correrá o risco de ser "favelizada":

- O impacto ambiental é brutal (...) Isso ia transformar Itaparica num subúrbio, ia acabar com a Ilha, esgotar a fonte de dinheiro turístico, porque ela não ia valer mais nada como atração turística. E agora ela pode ser trabalhada.

Há outras ponderações dos baianos. Na imagem exibida pelo governador, a ponte afetaria a vista do secular Forte São Marcelo, símbolo de Salvador, além de alterar a paisagem da Baía de Todos os Santos. Para não afetar a navegação, projeta-se a mobilidade da obra.

Comparado ambiciosamente à ponte Vasco da Gama (17,3 km), sobre o Rio Tejo, em Portugal, o esboço do governo petista não é levado a sério pelos itaparicanos. Em depoimento ao jornal A Tarde, a moradora Zetinha Sena, 71 anos, comentou: "Ontem (terça), quando passou na televisão que o governador iria construir a ponte, o assunto virou motivo de gozação de todo mundo na ilha".

- Quem investir vai ter que ser uma empresa que aspire a viver mais de 100, 150 anos. É aí que ela vai começar a ganhar dinheiro com o que já gastou com o pedágio. Duvido que uma empresa que se candidate a fazer essa ponte aceite fazer pelo pedágio, pela concessão. Pergunte a eles pra ver se aceitam... - provoca Ubaldo.

Confira a entrevista:

Terra Magazine - O governador Jaques Wagner apresentou ao presidente Lula o projeto da ponte Salvador-Itaparica, que pode ser fixa ou móvel, com orçamento de R$ 1,5 bilhão. Como o senhor avalia a construção dessa ponte?

João Ubaldo Ribeiro - Essa ponte nunca vai ser construída. Contra ela, há diversos argumentos. Parece que eles estão pensando numa verba de 1 bilhão e quinhentos mil, não sei se dólares ou reais. Eu já obtive informações, conversando com amigos do ramo, que uma ponte dessa não sai por menos de 10 bilhões. E os brasileiros ficam falando em bilhão pra cá, bilhão pra lá... É uma besteira. Bilhão é muito dinheiro. Já seria um investimento que não tem prioridade. A prioridade de uma ponte dessa, diante do acúmulo das necessidades do País, é baixíssima. Está certo, vamos dizer que houvesse condições em que o País estivesse muito bem, não precisando investir em tantas áreas, como agora vai investir, segundo o governo, em casas populares. Mas isso é dinheiro que poderia ser investido em infra-estrutura portuária, em infra-estrutura rodoviária.

Itaparica não tem outras necessidades?

Não creio que seja defensável diante da opinião pública nacional e mesmo da baiana, porque haverá gente sensata que vai concordar comigo. É questão de realismo. Tantas outras coisas precisam ser feitas, na área da educação, na área de saúde, na área de infra-estrutura... Investir esse dinheiro todo nisso... Inclusive, se custar o estimado por esse povo que eu andei conversando, dez bilhões de dólares, o retorno disso em pedágio é praticamente um negócio de séculos. Quem investir vai ter que ser uma empresa que aspire a viver mais de 100, 150 anos. É aí que ela vai começar a ganhar dinheiro com o que já gastou com o pedágio. Duvido que uma empresa que se candidate a fazer essa ponte aceite fazer pelo pedágio, pela concessão. Pergunte a eles pra ver se aceitam... Não aceitariam porque os cálculos, na ponta do lápis, não batem. Além de tudo, Itaparica vai ser transformada com isso. Nós temos uma realidade brasileira de pobreza e exclusão. Itaparica vai se transformar numa espécie de subúrbio de Salvador e, provavelmente, favelizada.

Esse é um projeto que tem 30 anos, foi apresentado inicialmente pela construtora Odebrecht. O senhor não acredita que esse projeto vá adiante, mas, caso seja, qual será o impacto ambiental, social?

O impacto ambiental é brutal. Porque não vai sobrar uma touceira em Itaparica, com certeza. Seja da especulação imobiliária rica, querendo construir... Como diz um amigo meu, de ironia, "eu não sossego enquanto ainda não me bater com essa orla aqui da Ilha toda cercada de arranha-céus..." Não duvide, não: condomínios de luxo junto à favela, que é um padrão brasileiro. Enfim, isso ia transformar Itaparica num subúrbio, ia acabar com a Ilha, esgotar a fonte de dinheiro turístico, porque ela não ia valer mais nada como atração turística. E agora ela pode ser trabalhada. Ela já não rende o que rendia por uma série de porquês, por uma série de problemas. Itaparica tem uma vocação turística.

E ocorre o problema da violência, que nunca teve antes.

Pois é. E esse negócio já prejudicou muito. Aquilo parece que está sendo enfrentado pelo governo, que mudou as autoridades locais. Parece que a situação está melhorando, mas, assim mesmo, tem havido episódios que surpreenderiam qualquer um.

Puseram um delegado "linha dura".

Não conheço ele não, mas me disseram...

Além disso tudo, não há a Baía de Todos os Santos?

Aquelas águas são muito mais profundas que as águas daqui, da baía da Guanabara. As águas têm umas correntes marinhas que não foram devidamente estudadas. Fortíssimas. Enfim, não há condição, é tudo especulação. O máximo que poderia haver seria uma crise de corrupção qualquer, a empresa pegar o dinheiro sabendo perfeitamente que não ia dar e aí ficar com aqueles começos de fundação atravancando a entrada da baía. Isso é que ia haver. "Quando é que vai concluir? Mais dois bilhões! Agora tem que fazer manutenção porque já botou e ficou abandonado..." Isso já aconteceu no Brasil e pode acontecer.

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