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O direito a uma cidade diversa

A arte pode e deve pensar essa cidade acessível, democrática, lúdica, diversa, mas isso só ocorre quando realmente pensamos para além de nós ou de nossa bolha. Por Marcelo Sousa Brito*


Publicado no A Tarde (jornal impresso, 10/08/2023)

Foto de Marcelo Sousa Brito

Flanar, derivas, errância são práticas adotadas por artistas e filósofos pequeno-burgueses como forma de apropriação da cidade e alimento para seus processos criativos. São abordagens elaboradas desde Charles Baudelaire passando por Walter Benjamin e também pelo movimento situacionista popularizado por Guy Debord.


Mas, é deste mesmo movimento que sai também o filósofo francês Henry Lefebvre (1901-1991), criador, entre tantas obras, do livro “O direito à cidade” (1968). Foi com esse livro que o escritor se popularizou dando argumentos a ativistas e políticos que lutam por melhorias na relação entre o indivíduo e a cidade. O grande problema é que, ávidos por um discurso que cause impacto na sociedade, o título do livro acabou se tornando uma bandeira, uma frase de efeito, um grito de guerra e, de seu verdadeiro conteúdo, poucos sabem, ou se dedicaram a saber.


Precisamos considerar que a cidade a qual eu reclamo o direito de ter não é a mesma cidade de quem lê esse texto, por exemplo. Há quem não gosta do carnaval na Barra, há quem luta pela tarifa zero nos transportes públicos, quem deseja que o silêncio a partir das 22h seja respeitado, que quer ter o direito de não ser abordado por religiosos fanáticos na rua, não ser incomodado por caixas de som na praia, usar sua caixa de som onde desejar, possibilitar o direito de ir e vir a mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência, limpar as vias públicas, inclusive afastando seres humanos em situação de rua do alcance de seu olhar. Há quem deseje cidades assim.


Então o direito à cidade é algo bem mais complexo do que imaginamos. A cidade diversa precisa dar conta de inúmeras peculiaridades, mas nós, indivíduos usuários do que chamamos cidade, também precisamos entender o nosso papel no funcionamento desse organismo vivo, precisamos compreender a diferença entre público e privado e também o que há de dialético nessas duas esferas. A praia é pública, mas quando eu imponho a todos a música que ouço eu privatizo a praia. Eu privatizo o transporte público quando abro minhas pernas ocupando os dois assentos disponíveis, impedindo que outra pessoa se sente ao meu lado. E assim a gente vai impondo nossa concepção de espaço público, nossa cidade ideal, a todas e todos; e a singularidade de uma cidade diversa vai ficando longe de se tornar realidade.


A arte pode e deve pensar essa cidade acessível, democrática, lúdica, diversa, mas isso só ocorre quando realmente pensamos para além de nós ou de nossa bolha. Retomando o início deste texto, é lindo realizar derivas protegidos por nossos pares ou com o aval das Universidades, mas quem do nada decide flanar em bairros como São Cristóvão ou Fazenda Grande do Retiro? Quem se interessa em se perder pelas ruas, becos e vielas do bairro do Comércio? Criar com e para a cidade requer disponibilizar o corpo para todas as contradições presentes no espaço urbano, sem julgamento, sem aprioris, para, assim, sentir as múltiplas cidades para além daquela à qual eu reclamo ter direito.

Foto de Marcelo Sousa Brito

Viver a cidade como experiência social e criativa exige de nós também não impor a todos e todas viverem a mesma experiência que eu vivi ou vivo. E isso acontece bastante nas experiências vividas por turistas, por exemplo. No Rio de Janeiro, a rua Pires de Almeida no bairro de Laranjeiras foi considerada a rua mais ‘instagramável’ da cidade. Com prédios da década de 1920 e vista para o Redentor, a rua tem atraído filas de turistas em busca da foto perfeita, mas justamente na busca pelo clique ideal muitos acabam deixando de viver outras experiências que estão para além dos pontos turísticos ou “da moda”. Tomar um caldo de cana, sentir a brisa enquanto conversa e observar o jogo de xadrez na mesa ao lado ou a dona de casa que passeia com o cachorro e sentir a história encrustada nas paredes dos prédios em sua maioria em estilo art déco.


Na Europa, a fim de humanizar a experiência turística e proteger a cidade de materiais poluentes, a associação cultural La Fourmi-e organiza o festival de arte urbana ecológica In Cité. A regra desse festival é que artistas criem obras urbanas utilizando materiais orgânicos retirados da natureza: A arte vegetal, por exemplo, um termo um tanto genérico para definir um movimento artístico que utiliza tudo que a natureza produz como suporte e material de criação. A ideia é tornar a experiência urbana mais lúdica e sustentável.


Pensar uma cidade diversa requer propor uma cidade como experiência coletiva, mas respeitando as individualidades; disponibilizando o acesso livre e seguro aos quatro cantos da cidade para todos e todas que desejam viver essa experiência urbana sem priorizar classes sociais ou limites geográficos. Enquanto eu derivo e me alimento do cotidiano do bairro de Paripe, alguém do Subúrbio Ferroviário pode flanar e deixar a vida passar observando o dia a dia dos moradores da Graça.


É assistir artistas da periferia em salas de espetáculos do centro da cidade, democratizar a utilização de espaços culturais e possibilitar acesso ao que é produzido em todos os campos da arte e da cultura. Se ver e ser visto. Ir e vir. Falar e ouvir. Dar passagem, dar a mão, um carinho. Abrir a porta, deixar entrar, deixar ir.


É estar sempre à disposição para não impor a “cidade à qual tenho direito” como “cidade ideal” é o que deve ser pensado antes de levantarem cartazes ou proferirem a máxima: O direito à cidade! Porque a cidade vai além do que eu desejo que ela seja.


* Ator e diretor teatral, Doutor em Artes Cênicas pela UFBA

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