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Salvador precisa resgatar a prática do planejamento da mobilidade

Daniel Caribé acredita que para resolver o problema em Salvador é preciso um planejamento participativo e popular, diálogo entre prefeitura e governo, além mudanças de paradigmas. Por Hieros Vasconcelos Rêgo e Paulo Roberto Sampaio


Publicado no Tribuna da Bahia

Há muitos anos, as reclamações com o transporte público permeiam o dia a dia da população soteropolitana. A situação tem sido motivo de diversos embates nos parlamentos e, como consenso, todos têm a noção de que é preciso mudar a atual realidade. A Prefeitura de Salvador e o Governo do Estado têm ao longo dos últimos anos apresentado projetos e obras elaboradas para sanar o problema. Metrô crescendo cada vez mais, BRT na mesma proporção, nova rodoviária sendo construída, viadutos, passarelas, novas ligações, mudanças de linhas e de rotas na expectativa de otimizar o a qualidade do transporte.

No entanto, apesar de todas as intervenções, a dificuldade continua sendo relatada cotidianamente. Em entrevista à Tribuna da Bahia, o doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Ufba e coordenador do Observatório da Mobilidade de Salvador, o professor Daniel Caribé acredita que para resolver o problema em Salvador é preciso um planejamento participativo e popular, diálogo entre prefeitura e governo, além mudanças de paradigmas, transformando o atual modelo de contratação, hoje pautado na tarifa cobrada dos usuários para a remuneração aos operadores pelos custos do sistema. “Por quilômetro rodado, por exemplo”, explica.

O coordenador do Observatório garante que é possível transformar a cidade na capital da mobilidade, de fato. Para isso, fala em criar o Sistema Único de Mobilidade. “Todo direito social precisa contar com um arranjo institucional e recursos suficientes para se realizar. A saúde, por exemplo, conta com o SUS”. Este plano, revolucionador para a sociedade baiana, só seria concretizado, no entanto, se houvesse uma integração entre prefeitura, governos estadual e federal.

Tribuna da Bahia - Qual o principal desafio do transporte público de Salvador em sua análise?

Daniel Caribé - Salvador precisa resgatar a prática do planejamento urbano, e, em especial, do planejamento da mobilidade. De preferência de forma participativa, metropolitana e integrada com outras áreas (saúde, educação, cultura e lazer, etc.). Hoje o que vemos é uma grande desarticulação. Nada “conversa” com nada, gerando sobreposições e especialmente lacunas. Além disso, não são priorizados o transporte coletivo e a mobilidade ativa, e os poucos recursos da mobilidade urbana são quase todos direcionados para o transporte individual motorizado (viadutos, duplicações, vias expressas, recapeamento, etc.). É preciso colocar o transporte público no topo da hierarquia das formas de se deslocar e se apropriar da cidade de Salvador. O principal problema, então, é de concepção. É preciso parar de tratar o transporte coletivo como se fosse um negócio, mesmo que em decadência, e não como exige a Constituição Federal desde 2015, quando foi instituído o direito ao transporte. Quando o transporte for tratado como direito, aí teremos subsídios não para salvar os empresários, mas para transformar a mobilidade urbana em poderoso instrumento de combate às desigualdades, entre elas a segregação socioespacial e racial que tanto caracteriza a nossa cidade.

Tribuna - A tarifa foi reajustada. O prefeito fala que as empresas estão quebradas e que é necessário subsídio do governo federal. Recentemente, disse que vai enviar PL à Câmara para que o reajuste da tarifa não recaia sobre passageiros e para que seja possível custear uma parte do valor ajustado. Também diz que houve uma queda no número de passageiros, o que onerou as empresas de ônibus. O que levou, de fato, à real situação do transporte coletivo de ônibus em Salvador?

Caribé - De fato o metrô entrou em competição com os ônibus, aprofundando a crise do sistema de transporte como um todo. O modelo de integração tarifária entre os dois modais de transporte é muito ruim, incentiva o corte de linhas de ônibus, levando à superlotação do metrô. Quando não há diálogo entre prefeitura e governo do estado, ao contrário, há uma disputa, quem perde é a população. O fato de a licitação do transporte coletivo feita em 2014 pelo Executivo municipal ter sido construída com base na outorga onerosa também não explica a situação, apenas mostrou que pioraria a situação que já era caótica. Porém, por pouco tempo a contratação funcionou assim, pois logo após a assinatura do contrato as empresas conseguiram suspender a cobrança. O grande problema não é mais esse, nem a danosa integração tarifária ônibus-metrô, e sim o modelo de contratação pautado na tarifa cobrada dos usuários, ao invés de ser pelo custo do sistema (por quilômetro rodado, por exemplo). Quando você remunera os operadores pela tarifa, há pressão para cortes de linhas, superlotação dos ônibus, demissão de rodoviários e uso de equipamentos obsoletos. As empresas optam por priorizar linhas superlotadas e abandonar populações vulneráveis economicamente, geralmente periféricas, à própria sorte. O modelo de contratação pautado na tarifa é um desastre social, econômico, racial e ambiental. É preciso ter coragem para assumir o grande erro que foi a licitação de 2014, e assim anular os contratos que hoje já não valem de nada. É preciso refazer todo o planejamento da mobilidade soteropolitano, com participação social, consultas e um novo modelo de contratação, remunerando os operadores pelos custos do sistema, deixando à cargo da prefeitura a definição das linhas e da frequência delas.

Tribuna - Muitas mudanças de linhas aconteceram em Salvador, segundo a SEMOB, para dar uma dinamização no transporte e diminuir tempos de viagem com as integrações com o BRT. Como você avalia?

Caribé - A cada corte de linha, há um incentivo para que as pessoas migrem para os carros e motocicletas, piorando as condições ambientais, de saúde, do trânsito, econômicas e, em última instância, retira receitas do já colapsado sistema de transporte coletivo. A verdade é que, hoje, quem pode fugir do transporte coletivo, foge. Um bom sistema de transporte leva em consideração que o seu público é diverso e precisa ser cativado. A tendência, com o envelhecimento da população, é ter um número cada vez maior de usuários com mobilidade reduzida, sem contar as pessoas com deficiência. E esse público não pode (ou tem dificuldade de) fazer baldeações, preferindo linhas que podem até demorar mais, mas não exigem a mudança de veículo. Por isso tem de ofertar as duas possibilidades: linhas diretas (mais demoradas) e com integração (mais rápidas), ao invés de excluir. Por exemplo, o metrô costuma ser muito penoso para pessoas idosas por conta das baldeações, escadas, lotação, etc. O mesmo acontece com o BRT. E são pessoas que têm menos pressa de chegar. Mesmo em cidades com boas redes de metrô, os idosos costumam utilizar mais os ônibus. Não dá para cortar essas linhas. Resumindo, quanto mais opções de trajeto e de modais de transporte, melhor. As pessoas têm demandas e capacidades de deslocamento distintas. A "racionalidade" de um bom sistema de transporte - que almeja tirar carros das ruas e recuperar usuários - se dá pela abundância, não pela escassez.

Tribuna - Segundo a Semob, a frota atual de ônibus é de cerca de 1,8 mil. E 150 micro-ônibus. Em agosto, mais de 30 milhões de pessoas utilizaram os serviços de ônibus na cidade. Teria uma quantidade ideal de frota e o que a prefeitura poderia fazer para melhorar a mobilidade daqueles que se locomovem a pé?

Caribé - Existe uma demanda reprimida enorme por transporte coletivo, mas só percebemos isso quando é adotada a tarifa zero. A demanda pode até triplicar, o que significa que muita gente não anda de ônibus por causa do preço da tarifa. Os índices de imobilidade urbana, de pessoas “prisioneiras do espaço local” como definiu Milton Santos, são assustadores. Outra quantidade de pessoas não usa o transporte coletivo porque as linhas não existem ou foram cortadas. Dimensionar o tamanho ideal de uma frota, então, não é tarefa fácil. À medida que o sistema for melhorando e se tornando mais seguro, mais eficiente, mais confiável e mais acessível - física e financeiramente –, mais pessoas vão retornar, vão fazer a transição modal rumo aos transportes coletivos, abandonando os veículos motorizados individuais. E você toca numa questão importante, que é a qualidade das calçadas e demais infraestruturas para a mobilidade ativa (pedestres e ciclistas). Sem essa infraestrutura não tem como as pessoas acessarem os ônibus. É o que a gente chama de micro acessibilidade. É preciso colocar em prática um programa de recuperação das calçadas, com cobertura verde (arborização) e iluminação pública, no mínimo. O Observatório da Mobilidade Urbana está finalizando uma auditoria da malha cicloviária cujos resultados serão divulgados em breve, mas é possível adiantar que a situação não é boa. As infraestruturas do Miolo e do Subúrbio colocam a vida dos usuários em risco, fora que ainda é muito difícil integrar bicicleta e transporte coletivo em nossa cidade.

Tribuna - Recentemente, houve uma polêmica com a possível retirada dos cobradores. O que senhor pensa sobre isso?

Caribé - Esse é um debate sensível porque a tarifa tem que ser abolida do transporte público para que ele se transforme em direito social, inclusive isso elevaria significativamente a necessidade de contratação de novos rodoviários por conta do aumento da demanda. Então, a abolição da tarifa seria muito boa para a categoria. Daí o cobrador teria de assumir a nova função de orientador dos usuários. Ele vai dar apoio às pessoas com mobilidade reduzida, orientar os usuários, zelar pelo veículo e pela segurança. Porém, em hipótese alguma, se recomenda fazer com que o motorista assuma também a função de cobrador. É uma prática que não só sobrecarrega o motorista e gera o desemprego de milhares de cobradores, como também coloca em risco a vida dos usuários.

Tribuna - Para finalizar, o que precisa ser feito para mudar a realidade do transporte de ónibus em salvador, oferecendo dignidade ao trabalhador e ao passageiro?

Caribé - É preciso criar, urgentemente, o Sistema Único de Mobilidade. Todo direito social precisa contar com um arranjo institucional e recursos suficientes para se realizar. A saúde, por exemplo, conta com o SUS. Tem que ter a participação do governo federal e do governo do estado, que juntos com a prefeitura, em colaboração ao invés de competição, contanto sempre com a participação da sociedade civil, devem implementar um novo modelo de transporte coletivo. Então, sem um fundo nacional de mobilidade urbana para reduzir as tarifas ou até mesmo zerá-las, sem a obrigatoriedade de regiões metropolitanas terem sistemas de transporte integrados, e sem que o transporte seja entendido como um poderoso instrumento de combate às desigualdades e segregações, não vamos conseguir sair do colapso dos transportes coletivos.


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