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O metrô de Salvador foi um ganho para o direito à cidade?

Grande parte da população ainda não consegue acessar facilmente esses novos modais, seja pela precária microacessibilidade e desconexão com os bairros periféricos, seja pelas limitações de renda. Por Isis Pitanga de Sousa

Um dos artigos premiados no I Concurso de Textos promovido pelo ObMob Salvador.

Estação de metrô do Retiro

A mobilidade urbana é uma das principais dificuldades enfrentadas pelos habitantes dos grandes centros urbanos brasileiros. A ênfase na utilização do veículo particular como principal meio de locomoção, a precariedade e os altos preços dos transportes coletivos para as populações de baixa renda têm colocado a questão da mobilidade como caminho para a melhoria da qualidade de vida nas cidades. Para além da discussão sobre os meios de transporte, o debate sobre a mobilidade é atravessado pelo debate do direito à cidade, como muitos movimentos sociais vêm reivindicando nos últimos anos. Entendendo, nesse contexto, o direito à cidade como a possibilidade que diversos grupos sociais têm de se deslocar pela cidade, seja para o trabalho ou para acessarem os serviços públicos essenciais, como saúde, educação, cultura e lazer. Portanto, a problemática da mobilidade nas grandes cidades brasileiras se centra, na atualidade, na quantidade de horas despendidas para o deslocamento habitação-trabalho, bem como na garantia de condições necessárias para a utilização dos serviços e os obstáculos enfrentados para essa utilização.

Essa problemática é decorrente do contexto histórico de formação das cidades brasileiras, com uma urbanização que reflete espacialmente as articulações hegemônicas dos agentes financeiros, econômicos, políticos e institucionais, gerando um espaço urbano extremamente desigual e segregado. No contexto da mobilidade, essa desigualdade também se expressa através de uma cidade que enfrenta uma precariedade dos transportes, com o sucateamento do sistema de ônibus, e de deslocamentos que penalizam todos os moradores, mas o faz especialmente para aqueles mais pobres e residentes em áreas periféricas. Isso é consequência de uma produção de cidade que centraliza os serviços e as oportunidades de trabalho e dispersa espacialmente os domicílios, obrigando a grande maioria da população a realizar longas viagens em um sistema de transporte coletivo de baixa qualidade e eficiência.

Em Salvador, estas questões com a mobilidade se tornaram mais evidentes a partir da década de 1980, quando a cidade já se encontrava bastante adensada e expandida para os seus limites, demonstrando a necessidade de reorganização do seu sistema de transporte, sinalizadas pelos longos congestionamentos causados pela concentração no modal rodoviário. É nesta mesma década que se iniciam os primeiros estudos de traçado para um sistema metroviário, porém, a efetivação de sua implantação acontece apenas no início dos anos 2000, quando se iniciaram suas obras. No entanto, o processo de implantação efetivo do metrô de Salvador durou cerca de 12 anos, tendo sua operação inaugurada em 2014, graças ao investimento e incentivo federal, uma vez que a capital baiana tinha se tornado uma das cidades-sedes da Copa do Mundo deste mesmo ano.

Apesar de toda a polêmica para sua implantação, principalmente por conta das paralisações, atrasos e pelo enorme gasto público, ainda assim o metrô é um importante ganho para a população de Salvador e Lauro de Freitas, uma vez que a integração entre os dois municípios conurbados se tornou muito mais rápida, reduzindo também o tempo de viagem gasto em alguns dos principais eixos estruturantes da capital baiana. No entanto, ainda assim apresenta muitas lacunas, principalmente no que diz respeito ao acesso pleno desse serviço pela população pobre da cidade, que geralmente reside nos bairros populares periféricos, os quais se encontram afastados desses eixos de mobilidade via transporte de massa. Aqueles que se encontram mais próximos, por sua vez, não possuem fácil acesso. As causas dessas lacunas são multifatoriais, mas podemos considerar como duas das principais a escolha do traçado do metrô e o seu modo de implantação elevado, que precariza a microacessibilidade no entorno das estações, uma vez que as vias dos pedestres precisaram ser elevadas por meio de passarelas e ficam desconectadas do restante do sistema viário, dificultando a acessibilidade e provocando um ambiente desconfortável e inseguro. Devido à morfologia da cidade, a formação de seu sistema viário contribuiu fortemente para a pouca articulação entre as vias de fundo de vale (por onde o metrô passa) e as vias de cumeadas (onde muitos bairros periféricos da cidade se instalaram). As vias de cumeada são onde circulam os transportes coletivos de linhas de ônibus, sistema que sofre com o sucateamento e a redução de frota com a implantação dos novos modais em Salvador, mas que, ainda assim, é o principal meio de transporte, uma vez que é por meio dele que se faz a integração das áreas periféricas às áreas centrais, além da integração com outros modais.

Portanto, em Salvador, é fundamental pensar a problemática da mobilidade para a produção de uma cidade mais justa, democrática e sustentável, considerando as abrangências macro e micro nas relações centro-periferia e as acessibilidades locais. É preciso entender que, mesmo com os grandes investimentos e transformações recentes no sistema de transporte da cidade, com a implantação e ampliação do sistema metroviário, as recentes intervenções do BRT (Bus Rapid Transit) e, consequentemente, as transformações viárias decorrentes disso, grande parte da população ainda não consegue acessar facilmente esses novos modais, seja pela precária microacessibilidade e desconexão com os bairros periféricos, seja pelas limitações de renda. Isso se deve à privatização dos serviços de mobilidade, que aumenta cada vez mais os custos de transporte, e às definições dos sistemas de transportes implantados, priorizando o modal rodoviário, que estruturou o sistema viário. Ancorado a isto, a forma de ocupação e expansão de Salvador ao longo dos anos e a constituição topográfica da cidade aumentaram as barreiras físicas para os deslocamentos, principalmente dos mais pobres. Diante disso, é necessário um olhar mais apurado para as questões de mobilidade, incluindo efetivamente o modo ativo (a pé e de bicicleta) na agenda dos transportes, de forma que seja possível pensar outras alternativas para a integração e conexão dos modais, possibilitando o direito de ir e vir para todos.

 

Referências

SOARES, Antonio Mateus de C. Territorialização e pobreza em Salvador – BA. Revista Geografias. Belo Horizonte, volume 8, nº 1, p. 83-96, 01 de junho de 2009.

GORDILHO-SOUZA, Angela Gordilho. Limites do Habitar: Segregação e exclusão na configuração urbana contemporânea de Salvador e perspectivas no final do século XX. 2ª Edição. Salvador: EDUFBA, 2008.

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