As lutas em torno do transporte público permitem que os usuários deixem de ser meros produtos, mas ainda não os colocaram para além de consumidores. Por Daniel Caribé
Publicado no Passa Palavra
O melhor dos processos de acirramento das lutas sociais é que, por trás da fumaça das bombas de gás e das fogueiras em meio ao asfalto levantadas no momento mais dramático, as peças no tabuleiro que conhecem os caminhos mesmo de olhos vendados aproveitam para se mover mais rapidamente. Quando o terreno fica claro não é difícil identificar quem ficou no lugar por não saber andar na incerteza e quem aproveitou a oportunidade para ir mais longe.
Enquanto do lado dos trabalhadores novos movimentos surgem e alguns dos antigos conseguem voltar a protagonizar as lutas, do lado do capital os gestores mais dinâmicos correm para dar respostas capazes de lhes garantir o poder e outros, para não perderem os lucros, aceleram os passos indo atrás das brechas que a antiga institucionalidade ainda deixa antes de serem preenchidas pelas novas formas do Estado.
Não é o propósito desta série de artigos tratar dos gestores do Estado e de suas propostas para não terem que mudar nada. Nem dos movimentos sociais e partidos de esquerda que se recusam a entender o novo momento. Estas são as peças que tropeçaram umas nas outras e, quando a luz do sol atingiu o chão, só nos mostrou o quanto para trás alguns ficaram.
Mas, por outro lado, há os gestores que precisam correr contra o tempo antes que também se percam. São eles que acirram e dinamizam a contradição que é a sociedade na qual vivemos, e um caso prático é a luta em torno dos editais de transportes que começou a eclodir já em 2013 em diversas cidades. E há os movimentos sociais que entendem a importância de combater estes empresários e por isso também iniciam suas marchas. Sobre estes é importante tecer ainda mais duas ou três palavras agora que, findado um ano de espetáculos, combates campais, prisões e perseguições, podemos focar em quem realmente importa.
O propósito desta série de artigos é entender de qual contexto nascem os editais de transportes (este primeiro artigo) e, em especial, realizar uma denúncia ao edital de transportes de Salvador (os artigos seguintes).
I
Apesar da luta pela moradia ter entrado em evidência nos últimos meses, e seus movimentos sociais estarem conseguindo criar laços de solidariedade com vários outros, este processo ainda se restringe a São Paulo e tem por referência o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, não conseguindo, até o momento, impulsionar mobilizações nas outras grandes cidades do país. Se o período que antecedeu a Copa do Mundo se mostrou como uma boa oportunidade para dar visibilidade a esta luta, a própria Copa se colocou como limite de difícil superação. A histeria ufanista na qual o país imergiu serviu como anestesia às dores dos meses anteriores de acirrados conflitos, e não se sabe ainda como os processos iniciados encontrarão sua continuidade.
Pelo contrário, no outro eixo das lutas pelo direito à cidade, o dos transportes, as mobilizações se espalharam por todo o país. E por ser um conflito não resolvido, o arrefecimento e a mudança de foco dos últimos meses não garante que seja esta a tendência.
Apesar dos últimos dez anos terem sido de aprendizado para os gestores do setor de transportes, que vinham conseguindo contornar as lutas contrárias aos seus interesses com relativo sucesso (ver o artigo de Manolo, “Sair do roteiro: obrigação de quem quer vencer”), e da tática de impulsionar as revoltas ter mostrado os seus limites (ver artigo de Caio Martins e Leonardo Cordeiro, “Revolta popular: o limite da tática”), condições muito objetivas como a inflação – que diminui os lucros dos empresários caso eles não tenham a liberdade de repassar aos seus empregados e aos consumidores dos seus produtos o aumento nos custos da produção – e a nova Lei de Mobilidade Urbana (2012), que obriga as cidades a fazerem seus planos de mobilidade atrelados ao Plano Diretor, impedem que as reivindicações em torno da mobilidade urbana continuem por muito tempo no âmbito das ações individuais e deixam o terreno aberto para ações coletivas (ler o artigo de Dokonal sobre as formas de resistência que os usuários do sistema de transportem encontram para combater a opressão cotidiana, “A economia das lutas do transporte”).
Mas neste eixo não só contabilizamos o movimento dos “usuários”, se é que podemos definir assim os que se somaram às lutas impulsionadas pelo Movimento Passe Livre – MPL (enquanto movimento social, no caso de São Paulo e algumas poucas outras cidades; enquanto pauta maior do levante, em outras tantas). Dedicaram-se à mesma pauta outros movimentos e frentes de lutas.
Este conflito urbano, questionador da dinâmica e da forma de planejamento das cidades, também colocou em evidência os próprios trabalhadores do setor, que passaram por cima das burocracias sindicais em algumas capitais e impulsionaram lutas radicais, das quais ainda não podemos tirar conclusões (ver um exemplo no artigo “De baixo para cima: a greve dos rodoviários em Salvador”, de autoria do Coletivo Passa Palavra), por mais que o otimismo de quem vive os processos por dentro nos empurre para tal. Mas se o conflito no local de trabalho se mostra vivo, derrubando alguns dos prognósticos conservadores que apontavam para o fim da classe trabalhadora, o contexto apresenta também outras formas de mobilização social sem, contudo, efetivar os diálogos entre as diferentes táticas.
Enquanto a luta se dá pelo direito à cidade de forma abstrata, o que de fato dá corpo às manifestações é a multidão, sem RG ou CNPJ (com exceção da força repressiva que consegue mapear e incriminar uma boa quantidade dos militantes dando rostos e nomes aos que não têm). Os movimentos sociais até conseguem, ao darem uma pauta concreta à luta pelo direito à cidade – como moradia e transporte, ou o fim dos extermínios de uma parte da população que está a cada dia mais inibida de participar do que restou de público – transformar a multidão em classe. Mas só em raros momentos conseguem superar a barreira das forças repressivas e colocar em evidência os seus reais adversários.
Já quando o conflito se expressa no local de trabalho, a repressão é mais direta e encontra dentro do Estado de Direito mecanismos para punir os revoltosos sem ter que recorrer às armas, a exemplo do uso da própria legislação trabalhista. Não dá para esconder os rostos. Voltar à vida normal no dia seguinte após uma manifestação ou a um piquete é encarar novamente e frente a frente o patrão que foi questionado no dia anterior. Em São Paulo agora há uma campanha contra as demissões políticas dos metroviários grevistas e em Salvador os rodoviários que pararam a cidade de forma surpreendente também sofrem retaliações. E são apenas dois exemplos.
O mais importante, entretanto, é que quando o conflito se expressa nestes termos “clássicos” coloca finalmente em evidência os empresários do setor de transportes. Ao contrário dos movimentos sociais que se apaixonam por si quando veem a própria imagem nas telas, os empresários fazem de tudo para não serem citados nominalmente. Somente nos processos de luta mais radiciais é que se chega até eles. Mesmo nas revoltas provocadas pela indignação frente ao sistema de transporte público, colocados entre os manifestantes e os que lucram com a precariedade da mobilidade urbana há sempre os prefeitos, os vereadores e demais sujeitos pagos para fazerem o papel de bucha de canhão.
É somente desta forma que os empresários do setor de transportes descem da abstração de “donos da cidade” e reaparecem como patrões diretos destes trabalhadores reprimidos pelas greves radicais. Em outros momentos de radicalidade ampliada a uma pluralidade de pautas e organizações, da mesma forma que a multidão vira o sujeito abstrato, os patrões se esgueiram pela institucionalidade criada para fins de mediar os conflitos.
Portanto, os processos atuais de luta nas cidades evidenciam também o conflito de classe no local de trabalho e isto deve ter muito a nos dizer. E, a partir dele, expõem também as condições de reprodução da força de trabalho: o salário baixo, os riscos da atividade, as hierarquias, as insatisfações com a burocracia sindical.
Enquanto as revoltas desvelam as contradições na cidade, a expõe enquanto espaço de reprodução da força de trabalho e de acumulação de valor, local da segregação em seus mais diversos níveis e formas, é a luta no local de trabalho que ajuda a dar corpo a um dos lados desta disputa quando ela se direciona para a mobilidade urbana e é nela que se vislumbra a possibilidade de se construir um modelo de transporte público para além do binômio Estado-empresa. Os trabalhadores, ao organizarem suas próprias lutas e ao controlarem, nem que seja momentaneamente, o processo produtivo no qual estão inseridos, mostram na prática a possibilidade de superação dos patrões e dos gestores.
Este é um lado. O outro é que, ao conseguirem mobilizar as polícias para reprimir os trabalhadores ou ao exigirem que os governantes se coloquem como seus porta-vozes, os empresários de transportes fazem exatamente o movimento contrário e transformam toda a cidade em engrenagens da mesma indústria. Seu espaço de criação de valor, de extração da mais-valia, não se resume aos seus trabalhadores diretamente empregados, nem mesmo aos que dependem indiretamente das suas garagens. Assim como os seus gestores hierarquicamente subalternos não se resumem aos que vestem a camisa da empresa.
Esta apropriação da cidade e esta sinergia com as demais atividades produtivas, exercendo inclusive o papel coordenador em muitos casos, impedem que os empresários de transportes obtenham total êxito no seu exercício cotidiano de invisibilidade. E é esta ampliação de poder e de espaço de reprodução de valor da garagem para a cidade que transforma os usuários dos serviços prestados por eles, além de consumidores, também em produtos.
Mas produtos e consumidores são elementos passivos nas relações de produção. Mesmo em relações monopolísticas de mercado, quando o consumidor tem que se revoltar contra a empresa única por não ter outra opção, não há a possibilidade de superar definitivamente esta situação a não ser assumindo o papel de trabalhador e tomando para si o controle da produção. É por isto que, na grande maioria dos casos, as revoltas contra o sistema de transportes costumam ser pouco propositivas, só para ficar em uma das acusações mais frequentes daqueles que apontam seus limites. Esse passo além, o controle pelos trabalhadores do processo produtivo, só pôde ser observado em raros momentos da modernidade e depende de um contexto nunca visto nas grandes cidades brasileiras.
É esta transformação do consumidor em trabalhador e a possibilidade de ampliação deste processo, porque no caso da luta pelos transportes a fábrica do empresário do setor é toda a cidade, que podem dar radicalidade às recentes manifestações, algo muito além das regras do jogo da atual institucionalidade. E, por mais que não tenha um movimento consolidado que busque representar este setor, foi o MPL que forneceu as condições para a revolta, mas nitidamente não pôde transformar esta revolta em uma nova forma de gestão ou autogestão das cidades.
Sem querer entrar na polêmica de saber se o MPL é ou não um movimento que representa os usuários do sistema de transporte, até porque pela origem autonomista (libertária seria o termo mais apropriado para outros) do Movimento seria uma contradição tal afirmativa, com ele se completa o rol de peças que percebemos mesmo antes da fumaça baixar: trabalhadores, burocratas, empresários, governos e usuários. E, claro, as organizações derivadas de cada grupo.
Ao apontar para a Tarifa Zero enquanto horizonte estratégico, o MPL, defendendo a organização do sistema de transportes pelos usuários em conjunto com os trabalhadores, vai muito além da luta pelo consumo de um produto dentro dos marcos da mercantilização da vida. Isto não impediu que fosse o aumento no valor da tarifa, e não a reivindicação do controle do sistema de transporte pelos trabalhadores e usuários, que agregasse multidões até obter a sua vitória e, após isto, se transformar numa pauta pulverizada no meio de outras tantas.
Assim, podemos concluir que as lutas em torno do transporte público permitem que os usuários deixem de ser meros produtos, mas ainda não os colocaram para além de consumidores. E se no cotidiano, ao pautar a Tarifa Zero e ao se organizar de forma autogestionária, o MPL expõe os limites do próprio capitalismo como um todo, ao se tornar vanguarda de processos revoltosos é obrigado a conduzi-los até uma vitória concreta dos consumidores e, portanto, limitada.
A potencialidade do momento é desvelada por esta dialética entre movimentos sociais, que pautam questões concretas através de estruturas revolucionárias, e capitalistas globais, que não conseguem ou se recusam a dar respostas a questões que poderiam ser resolvidas sem contradições nos marcos do próprio sistema atual.
Uma passagem extraída do texto “Problemas no Paraíso” de Slavoj Žižek, publicado no livro Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, ilustra bem este dilema, seu limite e potencialidade:
Tal inconsistência, essa necessidade de quebrar suas próprias regras, abre um espaço para intervenções políticas: quando o capitalista global é forçado a violar suas próprias regras, abre-se uma oportunidade para insistir que essas mesmas regras sejam obedecidas. Isto é, exigir coerência e consistência em pontos estrategicamente selecionados nos quais o sistema não consegue se manter coerente e consistente é uma forma de pressioná-lo como um todo. Em outras palavras, a arte da política reside em insistir em uma determinada demanda que, embora completamente “realista”, perturba o cerne da ideologia hegemônica e implica uma mudança muito mais radical, ou seja, que embora definitivamente viável e legítima, é de fato impossível. Era este o caso do projeto de saúde universal de Obama, razão pela qual as reações contrárias foram tão violentas, assim como as reivindicações do caso brasileiro, com o projeto Tarifa Zero.
II
Tentando sair das nuvens para voltar ao asfalto, a corrida dos empresários do setor de transportes e das prefeituras em diversas cidades brasileiras para aprovar editais de transportes que os favorecessem ainda mais, ou que pelo menos tentassem legitimar uma situação altamente questionável, reflete o quanto este setor foi abalado pelas mobilizações que vêm acontecendo há um ano no país. Ver o exemplo de Florianópolis, no artigo de Victor Khaled e de Goiânia, no site do Tarifa Zero Goiânia. A situação em Porto Alegre é bem peculiar, pois o edital foi boicotado pelas empresas que não manifestaram interesse, considerada a licitação deserta.
No caso de Salvador, que adentraremos com mais detalhes nos próximos artigos, há 40 anos que não havia um processo licitatório ou algo do tipo, o que configura como completamente ilegal o atual contrato que transfere às empresas de transportes o controle do sistema. A proposta do novo edital, segundo os empresários do setor, se justifica pela necessidade de ser legalizada a situação. Estranho é que não houvesse o interesse de fazer isto antes.
Além do mais, as mobilizações dos últimos meses reacenderam e deram novos elementos ao debate pelo direito à cidade. O Estatuto das Cidades, por exemplo, foi aprovado no apagar das luzes do último governo de Fernando Henrique Cardoso (2001), apesar de estar em pauta desde 1989. Muitos dos seus defensores mais ferrenhos assumiram logo em seguida o governo federal no primeiro mandato de Lula e as contradições advindas daí acabaram gerando muitas frustrações naqueles que depositaram esperanças nesta legislação. Apesar do arcabouço legal ser considerado progressista, as grandes cidades se afundaram ainda mais no caos. Com o adestramento do muitos movimentos sociais, um tapete vermelho foi estendido para que o mercado imobiliário e as montadoras de automóvel desfilassem. O consenso foi formado até chegarmos em junho de 2013.
Entretanto, isto não impediu que acontecessem disputas em torno dos instrumentos subordinados ao Estatuto das Cidades. Voltando ao caso de Salvador, pode se considerar que é uma cidade sem Plano Diretor devido às inúmeras denúncias de irregularidades na sua elaboração, sem falar na LOUOS, que foi declarada inconstitucional. Por último, o caçula destes instrumentos de planejamento urbano, o Plano de Mobilidade Urbana, deveria entrar urgentemente na pauta das grandes cidades brasileiras a partir da aprovação da Lei de Mobilidade Urbana (Lei 12.587) em 2012, mas em Salvador nada foi discutido a respeito. Para quem gosta de se perder no labirinto das leis e das suas estruturas derivadas, a pauta por aqui ainda é a posse do Conselho da Cidade. No mar de irregularidades e ilegalidades pelo qual se administra Salvador, por que há este interesse, por parte dos gestores públicos e das empresas do setor de transportes, em regularizar esta situação em específico deixando para a eternidade as outras demais?
Enfim, o novo aparato legal não obrigou que o planejamento urbano fosse prática adotada nas cidades brasileiras, sequer as grandes cidades seguiram as recomendações. E, no quesito “participação popular”, que era dado como a grande revolução desta imposição legal aos gestores locais, os resultados foram ainda mais frustrantes. Daí que, enquanto a geração de militantes que rompeu a ditadura militar e adentrou na nova fase democrática do país tinha o Estatuto das Cidades como umas das maiores âncoras das suas lutas, a nova geração de militantes sequer conhece esta legislação. A lacuna entre a cidade idealizada pelo Estatuto das Cidades e o caos em que se enfiaram as metrópoles brasileiras é a medida que separa dois momentos da história; e a falta de esperanças de uns neste instrumento e o papel assumido hoje por muitos dos seus idealizadores expõem as dificuldades em se estabelecer diálogos entre duas gerações.
Não sabemos ainda para qual lado o caldo das mobilizações que ainda acontecem irá entornar. Um processo de radicalização contínua, por exemplo, tenderia a superar estes instrumentos legais e impor uma nova institucionalidade. Contra este contexto não caberia outra solução aos empresários a não ser somar esforços à repressão, e uma derrota deles resultaria numa nova forma de compreender as cidades. Por outro lado, as lutas podem ser recuperadas por dentro e girar para velhas práticas da esquerda de tentar caminhar pelos caminhos seguros da atual institucionalidade. Daí que os esforços dos empresários de garantirem seus monopólios através dos atuais editais tenham todo o sentido. Derrubar o Edital de Transportes em Salvador, e também em todas as demais cidades, passa a ser, então, uma estratégia necessária para ganhar tempo enquanto os rumos não se definem.
Comentarios