Em vez de lugares “desumanizados”, os territórios populares constituem lugares de cultura própria, solidariedade, resistência e luta. Por Tássio Silva e Vinicius Fornieles
Na música “Bola de Cristal", a banda BaianaSystem faz alusão à disputa dos “agentes produtores” do espaço urbano, a partir do trecho: “Tem quem analisa/ tem quem banaliza / quem passa no Visa / quem faz a divisa / quem fica de cima e não vê”. Ou seja, o capital privado analisa os espaços que podem ser comprados, valorizados e vendidos. O poder público define os zoneamentos poligonais, coeficientes de rendimento e gabaritos, isto é, as divisas, por meio dos Planos Diretores e outros instrumentos, muitas vezes “banalizando” alguns territórios e seus/suas moradores/as e priorizando outros, visando interesses corporativos. E, por último, as contradições da classe média que, do alto de suas coberturas, não consegue ver as estratégias de sobrevivência e existência escritas no chão das cidades.
Não diferente de outras grandes cidades, Salvador é lugar de disputas, paradoxos e insurgências. Apesar de alguns territórios, intencionalmente, “não serem vistos” ou serem apagados do mapa de Salvador, como no filme Bacurau, os serviços realizados por seus/suas moradores/as, que saem de bairros como Paripe, Plataforma, Fazenda Grande do Retiro, Sussuarana, Cajazeiras, Águas Claras, Bairro da Paz etc em transportes públicos caros e de péssima qualidade asseguram o funcionamento da cidade como um todo. O apagamento ou “invisibilidade” se efetiva pela omissão (ou seria ação?) do poder público em não garantir direitos e liberdades e/ou pela distância (territorial ou/e simbólica) das “áreas centrais”.
A gestão urbana discriminatória nos territórios populares/negros é acompanhada de uma série de processos de “desumanização” de seus modos de viver e culturas pela ótica elitista e racista, conforme afirma Eugenio Raúl Zaffaroni (1988), de modo a perpetuar a segregação. Assim, tem-se o enclausuramento geográfico ante um recorte social e racial, que, por sua vez, passa a conceber práticas artísticas e culturais, particulares de sua realidade, as quais, inevitavelmente, se espraiam rumo às dimensões da cidade, como o eco de um grito.
Em consonância com o conglomerado dos fluxos de pessoas, na capital baiana, o que está em movimento também são as ideias, afetos e ações. Elas são responsáveis - por meio de um ato de retroalimentação - pela mudança do próprio espaço urbano. É dessa forma que o organismo vivo que compõe a cidade trata de repaginar tanto as maneiras com que ocorrem as interpretações e relacionamentos, quanto a própria questão estética que permeia o campo visual e simbólico. Assim, uma vez compreendida enquanto fruto das relações sociais, a modificação do escopo da cidade não se deve à atitude individualizada de alguém ou determinado grupo/classe social, mas é resultado da produção orgânica do todo (LEFEBVRE, 2010).
Dito isso, em vez de lugares “desumanizados”, os territórios populares constituem lugares de cultura própria, solidariedade, resistência e luta. Estratégias proporcionadas pela necessidade de organização frente ao próprio processo de apartheid, desigualdades e racismo, também se constituem suas próprias maneiras de existir. Diante da lógica segregacionista do capital e negação de direitos, a resposta das “quebradas” sempre foi a lógica do “nós por nós”, materializada nas organizações políticas e comunitárias, coletivos, saraus e toda Cultura de Rua, como o movimento Hip-Hop - na condição de arte, identidade e atitude (SILVA, 2022). Entre todos os elementos que dão forma e âmago ao movimento, estão as pixações[1], grafites e tags.
As tatuagens sobre a pele urbana são uma combustão de expressões e ações para politização da revolta, ante a segregação sócio-espacial e racial, necessidade de expressão, busca por reconhecimento social, visibilidade e admiração para quem faz parte do “rolê”. Não por acaso, o movimento Hip-Hop é protagonizado, sobretudo, pelos principais alvos de estigmas sociais - a juventude negra periférica - e o deslocamento dos seus corpos físicos e políticos constituem-se “territórios móveis” (BERTH, 2021).
A verdade é que os frequentes cortes de linhas de ônibus, passagens extremamente caras e péssima qualidade no serviço de transporte coletivo em Salvador tendem a perpetuar o que Milton Santos (1993) chamou de “exílio nas periferias”. No entanto, a arte urbana marginal, sobretudo o pixo, por ser criminalizado, taxado como vandalismo e considerado esteticamente agressivo em cada quarteirão revela que existe fluxo e subversão dos artistas urbanos que saem de bairros como Paripe, Plataforma, Fazenda Grande do Retiro, Sussuarana, Cajazeiras, Águas Claras, Bairro da Paz etc e ocupam outros territórios da cidade. O todo! Diante da ausência de meios formais para participação na gestão e planejamento urbano, o grito e o eco se manifestam por meio da apropriação do espaço público, confrontando a soberania da propriedade privada.
Nesse sentido, a força social - aqui elucidada na figura do/a artista urbano perpetuador/a de atitudes transgressoras - realiza a materialização da utopia citadina pretendida por Henri Lefebvre (2010). Chama-se utopia em virtude de que o projeto de cidade moderna é pensado de forma a agregar a totalidade de seus viventes, garantindo o pleno acesso à toda a malha geográfica que compreende a cidade e, para tanto, é pela atividade humana que se elabora tal conexão. É por meio das escritas urbanas marginais, portanto, que o/a artista culmina a síntese do contexto urbano, participando das relações orgânicas da cidade, habitando-a e se apropriando para permear o mundo com sua existência, dando sentido ao conceito de cidade, vez que produto da ação humana conjunta. Assim, a distribuição dos pixos pela cidade surge como o testemunho do deslocamento rumo à efetividade do direito à cidade.
Os/As artistas urbanas são verdadeiros/as “estrangeiros/as” naqueles bairros em que residem, majoritariamente, moradores/as da classe média. Logo, suas intervenções contém um significado político de explanar no concreto os conflitos existentes, outras narrativas, bagagens subjetivas e vivências heterogêneas, proporcionando voz e vez aos sujeitos que vivem na margem e reivindicam a natureza dos espaços públicos como habitat natural de vivências, convivências, existências, resistências, insurgências e, inevitavelmente, de disputas, que devem ser base para diálogos e alicerces de uma cidade democrática (SILVA, 2022).
Nesses trânsitos, os/as mesmos/as artistas urbanos - como estratégia para o acesso ao transporte coletivo - recitam poesias nos “busão”. A cultura Hip-Hop é muita coisa! Não só entre um ponto e outro, mas também no retorno para os territórios de origem, não vistos por quem nega a cidade enquanto pluralidade. Apesar disso, tais territórios são sentidos por seus/suas moradores/as.
Assim como a prática é critério da verdade, as intervenções dos artistas urbanos por toda a cidade são provas do trânsito. O trânsito comprova a ocupação. E, por sua vez, a ocupação reivindica o direito à cidade!
Nota:
[1] Optou-se, neste texto, pela troca do “ch” por “x”, já que os/as artistas de rua escrevem, propositalmente, desta maneira.
Referências Bibliográficas:
BERTH, Joice. Se a cidade fosse nossa: racismos, falocentrismos e opressões nas cidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5ª ed. São Paulo: Centauro, 2010. 116. SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo: EDUSP, 1993.
SILVA, Tássio Santos. PELO “FIM DO MEDO”: A ARTE URBANA COMO ANUNCIADORA DE HORIZONTES EM SALVADOR.. In: Anais do XI Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico. Anais...Salvador(BA) UCSal, 2021. Disponível em: <https//www.even3.com.br/anais/xicbdu2022/463398-PELO-FIM-DO-MEDO--A-ARTE-URBANA-COMO-ANUNCIADORA-DE-HORIZONTES-EM-SALVADOR>. Acesso em: 30/04/2023 14:14
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: aproximacíon desde un margen. Bogotá:Editorial Temis S. A., 1988
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