Podemos supor haver racismo contra as comunidades tradicionais, marisqueiras e quilombolas resistentes nos territórios insulares e no Subúrbio outrora ferroviário? Por Daniel Caribé*
O transporte marítimo é uma das formas de se deslocar pelas cidades e Salvador poderia ser um belo exemplo de como isso é viável. A capital baiana tem três ilhas (Maré, Frades e Bom Jesus dos Passos) que somam mais de 10 mil habitantes, se conecta a outras (Itaparica é a maior, mas não a única) e ainda mantém, aos trancos e barrancos, as travessias Plataforma-Ribeira e Mar Grande-Salvador. O que ainda é pouco, pois deveríamos ter inúmeras outras, recuperando a conexão com as cidades do Recôncavo por meio das águas quase sempre calmas da Baía de Todos os Santos.
Isso significa que milhares de soteropolitanos e moradores da Região Metropolitana dependem tanto dos “barquinhos” quanto das grandes embarcações para chegar aos seus postos de trabalho, acessar serviços de saúde e educação, desfrutar das atividades de lazer, etc. É um modal barato e seguro, de baixo impacto ambiental, podendo ser integrado aos demais, diversificando as possibilidades da mobilidade urbana e melhorando a acessibilidade não apenas para os habitantes das ilhas.
Porém, sua importância está longe de ser reconhecida pelo Governo do Estado da Bahia e pela Prefeitura de Salvador. Vimos no último sábado (04/11) um flagrante desse descaso, quando parte do píer do terminal de São Tomé de Paripe desabou, após anos de abandono. Por sorte ninguém saiu gravemente ferido, provocando, no máximo, a tão aguardada manifestação dos responsáveis. Seria um alívio se fosse apenas um caso isolado.
Em 2019 o píer do terminal de Paramana, na Ilha dos Frades, também desabou - e assim permanece até hoje (foto em destaque). O caso de Paramana é ainda mais paradoxal, pois se a comunidade é pobre, no seu entorno há muita riqueza e privatização, inclusive píeres recém-construídos e exclusivos para grandes empreendimentos, totalmente inacessíveis para a população local.
Se por pouco em São Tomé de Paripe e em Paramana não aconteceu um desastre, em 2017 os usuários da Travessia Mar Grande-Salvador não tiveram a mesma sorte, e 19 deles perderam a vida em uma das maiores tragédias do nosso estado. O desastre de Mar Grande se soma à destruição do sistema ferry-boat que conecta Salvador à Itaparica com a promessa de que uma bilionária e questionada ponte acabará com o martírio dos moradores e veranistas das duas cidades localizadas na maior ilha da baía.
Entretanto, não é necessário ser residente de uma das ilhas para precisar da mobilidade marítima e sofrer com a péssima qualidade do serviço prestado. Moradores da Península de Itapagipe e do Subúrbio Ferroviário penaram durante muitos anos devido ao mesmo descaso. Tendo de enfrentar recorrentes interrupções da Travessia Plataforma-Ribeira, agora pelo menos itapagipanos e suburbanos têm a promessa de que os barcos atenderão às necessidades da população de forma regular, especialmente após perderem o Trem do Subúrbio. Os terminais desses bairros finalmente passam por manutenção, iniciada em novembro.
Por último, lembramos que Salvador chegou a pensar em investir de verdade nesse modal ao propor a Via Náutica, conectando bairros costeiros do Subúrbio Ferroviário à área central, servindo também para atividades turísticas. Foi por conta desse projeto que o atracadouro da Ponta de Humaitá passou por uma requalificação em 2000, chegando a ficar pronto, porém a Via Náutica nunca saiu do papel.
O fato é que tem algo muito errado com uma cidade que constrói elevados, viadutos, túneis, vias expressas e se propõe a erguer uma ponte de 12 km de extensão, tudo isso para aumentar a fluidez dos automóveis, mas deixa desabar simples terminais marítimos, sucateia o sistema ferry-boat, deixa de fiscalizar a travessia Mar Grande-Salvador e abandona projetos com a Via Náutica, o que se soma ao dramático colapso dos demais transportes coletivos.
Por que soluções baratas e simples, porém eficientes, sustentáveis e acessíveis – como são os ferries e balsas – não interessam aos atuais governantes? Por que enquanto as grandes cidades recuperam as ruas para os pedestres, investindo na microacessibilidade e em melhorias nos transportes coletivos (e até pensam em implementar a gratuidade!), os senhores que governam a Bahia e Salvador desperdiçam a oportunidade de mostrar ao mundo mais uma das possibilidades de se deslocar pelas metrópoles?
Talvez precisemos encontrar as respostas às perguntas seguintes antes de respondermos às anteriores: podemos supor haver racismo contra as comunidades tradicionais, marisqueiras e quilombolas resistentes nos territórios insulares e no Subúrbio outrora ferroviário? Ou existem interesses imobiliários pressionando os governos para facilitarem a expulsão dessas populações das suas terras agora tão cobiçadas?
São muitas questões e uma certeza: os governantes brasileiros, o que inclui os baianos, não entendem que a mobilidade urbana, inclusive a marítima, é um potente instrumento de combate às desigualdades. E enquanto não compreendem isso, ou não se interessam em combater as desigualdades, o que dá no mesmo, tudo que fazem acaba por aprofundá-las.
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