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Monotrilho do Subúrbio: desapropriações e resistências

Atualizado: 24 de set. de 2021

Desativação de linha férrea no Subúrbio de Salvador para implantação de Monotrilho impactou a rotina social e financeira dos moradores da região. Por Daniel Brito e Mário Pinho

Imagem: autor desconhecido
“Antes, com o trem, a gente gastava um, dois reais para ir e voltar todos os dias. Agora a gente gasta quase dez reais. Isso quando os motoristas do ônibus deixam a gente entrar, na maioria eles não querem deixar e a população também não concorda, por causa do cheiro do peixe”.

Esse é o relato de Jorge Cirne, pescador e morador do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Assim como ele, era grande o número de pessoas que usavam o sistema ferroviário da região para ir ou voltar da Feira de São Joaquim, a maior da cidade, a fim de vender seus produtos ou comprar outros para revender nos seus respectivos bairros.


“Até o culto das religiões de matriz africana foi prejudicado. O pessoal ia na Feira catar folha de banana pra enrolar o acaçá [comida ritual do candomblé], pra fazer xarope, usava o trem pra trazer os sacos de folha. Era uma pequena renda e o pessoal deixou de ter essa renda”, complementa.


As aspas de Jorge mostram efeitos da desativação do chamado Trem do Subúrbio, uma linha férrea urbana de 13,5 km criada em 1860 como parte da malha ferroviária nacional. Era a linha que ligava Salvador ao resto do país através dos trilhos e que se entrelaçou à formação e desenvolvimento da região apelidada de Subúrbio Ferroviário.


Com a privatização da Rede Ferroviária Nacional, em 1996, o trecho foi desmembrado e ficou sob responsabilidade da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), e, mais tarde, em 2005, repassado à administração municipal, a partir da Companhia de Transportes de Salvador (CTS), iniciando um processo de sucateamento do modal. Finalmente, no ano de 2013, a administração do sistema foi novamente transferida, agora ao governo estadual, juntamente com o metrô, que estava em implantação na cidade.


Antigo trem da CBTU, operado pela Prefeitura de Salvador. Estação Paripe, 2008. Foto: Vagner Costa

Coube à gestão estadual, por sua vez, a revitalização do sistema de trens urbanos, que a essa altura funcionava com precariedade, no entanto, ainda sendo fundamental para o ir e vir de milhares de suburbanos. E no ano de 2014 foi anunciado que o trem deixaria de existir para dar a lugar a um novo sistema, o VLT, posteriormente substituído para um monotrilho, dando início a uma série de debates e insatisfações quanto à eficácia do modal, os impactos sociais de sua implantação e a real necessidade de mudança de sistema.



No fim, sem levar em consideração a opinião de técnicos em mobilidade urbana, tampouco manter diálogo com a população, o Trem do Subúrbio foi desativado em fevereiro de 2021, deixando todos os seus habituais usuários, de fato, a ver navios.


Desapropriações e tarifa inacessível


Apesar das contradições nas alterações técnicas do projeto, o ponto mais cruel na opção do governo estadual pelo monotrilho são os impactos sociais de sua implantação. Para a construção das vigas de concreto que darão sustentação ao modal, moradores que há anos residem próximo da linha férrea terão que deixar suas casas.


A notícia das desapropriações foi levada por engenheiros da empresa que irá construir e operar o novo sistema. Cerca de 449 imóveis serão removidos, de acordo com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano (Sedur). Muitas delas foram cruelmente demarcadas com tinta.


Reprodução/TV Bahia

O Ministério Público da Bahia (MP-BA) foi acionado e reagiu contra a metodologia elaborada pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) para calcular o valor das indenizações que serão pagas às famílias, pois não condiz com o valor de mercado. O Governo do Estado e a concessionária, no entanto, se recusam a mudar de posição. Uma ação do MP-BA contra o Estado corre na Justiça.



Outro ponto de grande impacto desta intervenção é a discrepância no custo da tarifa de deslocamento. Até a sua desativação, em fevereiro de 2021, o trem do Subúrbio cobrava R$ 0,50 por passageiro. O novo modal promete equiparar o valor da passagem ao que é cobrado nos ônibus e metrô, algo superior a R$ 4.


Uma pesquisa feita pelo MP-BA em parceria com a Rede Cidade Popular, Tec&Mob Tecnologia e Mobilidade Urbana e BÁKÓ Escritório Público de Engenharia e Arquitetura apontou para um prejuízo socioeconômico e da mobilidade de usuários do trem. Realizado no final de 2019 e apresentado no ano seguinte, o estudo traçou um perfil do usuário do sistema.


Segundo a pesquisa, 6 mil pessoas utilizavam por dia a linha de trem entre as estações da Calçada e Paripe, sendo que 42% delas ganhavam, à época, menos que um quarto do salário mínimo e estavam abaixo da linha da pobreza. O perfil traçado apontou também que 90% dos usuários eram negros, 80% chegavam à estação do trem a pé e cerca de 70% afirmaram que deixariam de utilizar a linha ou reduzirão o uso após a mudança do modal.


O prejuízo socioeconômico mostrou outros números ainda determinantes: com base nos dados absolutos obtidos, 91% dos usuários poderiam pagar valores inferiores a R$4 pela passagem e apenas 9% poderiam pagar R$ 4 pela passagem do monotrilho - que era, à época, a tarifa dos ônibus de Salvador.


Romildo de Jesus/Tribuna da Bahia

Criar uma espécie de tarifa diferenciada para pessoas mais vulneráveis socioeconomicamente, no entanto, não está nos planos do governo estadual, ao menos por enquanto. Pelo menos foi o que afirmou o governador Rui Costa, no final do ano passado. Na ocasião, ele disse em entrevista ao site Bahia Notícias, que não há possibilidade de ter “várias tarifas na mesma cidade”.


“Aqui nós já pagamos um forte subsídio porque pra garantir um bilhete único, que é o único do país que faz isso, nem São Paulo, faz. O estado está bancando essa diferença”, justificou.


O secretário estadual de Desenvolvimento Urbano, Nelson Pelegrino, reforçou o discurso do governador em entrevista ao Jornal Correio, questionando o número de pessoas vulneráveis apresentado pela pesquisa. “A composição do público é sazonal, em grande maioria. São pessoas que vão na Calçada fazer compras, na Feira de São Joaquim. Por esse motivo, não temos como fazer uma tarifa por corte social, o universo para isso é maior”, alegou.


Pelegrino, no entanto, jamais comprovou, através de documentos e números, a afirmação. Além disso, mesmo citando que essas conclusões foram obtidas através de uma pesquisa origem-destino realizada na região, nada foi apresentado em nenhum momento pelo órgão estadual à sociedade.


Para um dos coordenadores do Observatório da Mobilidade Urbana de Salvador, Daniel Caribé, as afirmações do governador e do secretário não fazem sentido. “Esse subsídio ao metrô não era considerado como tal tempos atrás, sendo, legalmente, um prejuízo da operação que era ressarcido por se tratar de uma parceria público-privada. Além disso, é sim, possível, ter mais de uma tarifa na mesma cidade. A meia-passagem nos ônibus de Salvador, que funciona para estudantes e que, até março, era aplicada a todos os usuários aos domingos é um exemplo disso. Por fim, uma proposta de tarifa social, focada em grupos vulneráveis, é tecnicamente possível no Brasil, pois há cadastros que viabilizam a iniciativa, como o Cadastro Único, por exemplo. É através dele que famílias de baixa renda são elegíveis para benefícios federais, como o Auxílio Emergencial e o Bolsa Família”, explicou.


Reprodução/TV Bahia

O impacto do aumento na tarifa não aguardou o início da operação do monotrilho. Com a desativação do trem, restou como opção de transporte público aos moradores do Subúrbio o sistema de ônibus urbanos, que custam atualmente R$ 4,40.


Resistência da comunidade


Diante do cenário, moradores e líderes comunitários, com apoio de ativistas da mobilidade urbana e demais entidades da sociedade civil, montaram estratégias de resistência contra as inúmeras consequências da implantação do monotrilho.


Uma das primeiras ações coletivas ocorreu em fevereiro de 2020, pouco antes do início da pandemia do novo coronavírus, na Escola de Verão Monotrilho em Disputa, um movimento de articulação entre associações de moradores do Subúrbio Ferroviário, movimentos sociais, grupos de pesquisa da Universidade Federal da Bahia e lideranças locais.


Já em 2021, pouco antes da desativação da linha férrea, o diretor de documentários Carlos Pronzato lançou, em seu canal no Youtube, o documentário “Trem do Subúrbio: Trilhos da Resistência”. Na produção audiovisual, o autor retrata, através de vários relatos, os impactos da construção do monotrilho à população local.



Judicialmente, pouco antes da parada definitiva dos trens, o Ministério Público Estadual e o Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá) pediram ao Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) que o governo baiano cumprisse uma decisão judicial anterior que ordenava a adoção de medidas necessárias para a realização de estudos técnicos sociais sobre os riscos de danos da obra à mobilidade da população local.


Além do elevado aumento, a população ainda precisou ir às ruas exigir que as linhas rodoviárias fossem reforçadas para atender a demanda órfã do sistema ferroviário. Na ocasião, a Prefeitura de Salvador, que regula os ônibus, argumentou que não houve demanda do governo estadual para a questão.


Após as manifestações, foi criado um plano de emergência, envolvendo o Subsistema de Transporte Especial Complementar (STEC) para operar linhas reguladoras do Subúrbio ao Comércio nos horários de pico no início da manhã e no final da tarde, restando ao governo estadual a instalação de placas informativas nas proximidades das antigas estações com os itinerários dos ônibus que atendem o trecho antes coberto pelo trem. Mas o paliativo, obviamente, não foi suficiente.


Não é o fim


Os conflitos e questionamentos inaugurados pelo monotrilho estão apenas começando. Nos próximos meses deve ganhar mais evidência o processo de desapropriação das famílias, pois da mesma forma que o governo do Estado se eximiu de ofertar um transporte financeiramente acessível à população do Subúrbio Ferroviário para compensar o fim do trem, também não apresentou um plano de remoção das famílias. Moradores vizinhos da extinta linha férrea vivem apreensivos sem saber para aonde vão e quanto receberão de indenização.

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