Trago uma lista de possibilidades de informações que poderiam ser obtidas a partir de um processo real de abertura de dados. Por Pablo Forentino*
A ideia de dados abertos busca, antes de tudo, empoderar a sociedade com detalhamento quantitativo sobre as dinâmicas que a estruturam e sobre como a Administração Pública utiliza seus recursos, garantindo a disponibilidade em formatos acessíveis e processáveis a partir de licenças abertas.
No atual estágio de avanço das Tecnologias de Informação, da consolidação da Internet e da alta capacidade de geração e armazenamento de dados, tornou-se bastante acessível e intuitivo para qualquer instituição, seja pública ou privada, a publicação de dados sobre os seus mais diversos segmentos, áreas e conhecimentos. Este processo reforça o controle social sobre as atividades dos poderes públicos e políticas instauradas no funcionamento das cidades.
Para a mobilidade urbana existe a mesma potencialidade de uso. Diversas são as demandas e possibilidades de abertura de dados para conhecermos melhor as estruturas e as dinâmicas de deslocamento nas metrópoles, revelando muitas vezes comportamentos e tendências que poderiam justificar políticas públicas mais eficientes. Para tal, é necessário haver vontade política e projetos robustos de abertura de dados, disponibilizando informações que sejam realmente relevantes para que a sociedade possa de fato acompanhar e criticar políticas de mobilidade.
Inicio, todos os semestres, uma das disciplinas que leciono com a seguinte pergunta: “existe algum impedimento ou restrição tecnológica para que a Administração Pública disponibilize uma aplicação de consulta que informe quantos passageiros passaram por uma determinada linha de ônibus e quanto a mesma arrecadou?”. A maioria dos alunos responde sem titubear: NÃO! De fato, esses dados existem, mas estão sob a tutela da Integra[1] .
Mesmo sendo dados referentes à oferta de um serviço público, para o qual foram contratadas empresas de ônibus (o que seria suficiente para afirmar que nós temos direito a acessar esses dados), nem a Integra nem a Administração Municipal esboçam iniciativas de abertura de dados sobre o transporte público por ônibus. Esta prática de apropriação dos dados públicos para entes privados não é exclusividade de Salvador. No Rio de Janeiro, por exemplo, tal apropriação acontece da mesma maneira, sem que a sociedade consiga amplo acesso aos dados.
Mas o que poderíamos saber se os dados sobre este modo de transporte fossem abertos? Trago uma lista de possibilidades de informações que poderiam ser obtidas a partir de um processo real de abertura de dados:
Quantidade de passageiros que passaram por uma linha em um determinado dia;
Montante arrecadado por uma determinada linha;
Quantos ônibus estão em operação em uma determinada linha;
Localização dos veículos em tempo real;
Trajeto geolocalizado de cada linha (Google já tem estes dados, a sociedade não);
Quantidade de ocorrências por empresa em cada mês e em todo o ano;
Frota ativa e inativa (total) por empresa;
Estudos que baseiam criações e extinções de linhas e suas variações;
Divulgação das linhas desativadas/suspensas durante a pandemia;
Monitoramento das velocidades praticadas pelos condutores;
No Índice de Dados Abertos da Open Knowledge Brasil, que avaliou a abertura de dados em 8 grandes cidades brasileiras, Salvador figurou entre as últimas colocadas, sendo a questão da mobilidade um dos aspectos mais negativos, com ampla ausência de dados fundamentais sobre os deslocamentos urbanos na soterópolis.
O mais próximo que temos de qualquer iniciativa de abertura de dados nesta área é o Anuário de Transporte de Salvador, o qual não consegue ser acessado diretamente a partir dos sites da Semob ou Transalvador (pelo menos não localizamos até o final deste texto). No entanto, pesquisadores e observadores da mobilidade urbana conseguem, a partir de buscadores na Internet, localizar os arquivos oficiais referentes aos anuários dos últimos anos (sempre em formatos fechados, como é o caso do formato PDF). Alguns deles nunca foram disponibilizados em formato digital pela Administração Pública, como no caso do anuário impresso de 2011, que precisou ser escaneado por um voluntário, que foi presencialmente à biblioteca da Fundação Mário Leal e conseguiu gerar e compartilhar uma versão digitalizada do relatório para o referido ano. São esforços coletivos como esse que fazem disseminar mais dados sobre a mobilidade em Salvador entre pesquisadores e observadores do tema, carentes e ávidos por mais informações. Um exemplo do que é possível construir a partir destes esforços é a série histórica da frota de ônibus nos últimos 10 anos, detalhada na imagem abaixo.
Temos hoje uma frota inferior à de 2011. Levantar estes dados só foi possível a partir de esforços coletivos para obtê-los e compartilhá-los. Se quisermos avançar um pouco mais numa análise comparativa, considerando frota de ônibus X população, veremos que, em 2015, Recife tinha 185 ônibus para cada cem mil habitantes, enquanto Salvador, para o mesmo contingente populacional, tinha apenas 92 ônibus (a metade do que Recife oferece). Este número tende a ser ainda pior para Salvador, uma vez que sua frota foi reduzida para menos de 1900 veículos e quase 40 linhas foram desativadas durante a pandemia, mesmo com a recente chegada de novos veículos. O Anuário de Transporte de Salvador de 2020 ainda revela que 52% da frota possui idade superior a 7 anos, sendo 18% da frota com mais de 10 anos.
Se quisermos investir ainda mais em tecnologia e abertura de dados, poderíamos ter um painel em tempo real exibindo o deslocamento de cada veículo em atividade (e aqueles que estão parados nas garagens). Este tipo de aplicação já existe em algumas cidades do país (foto abaixo), mesmo que esteja fechado nos órgãos de gestão do trânsito e da mobilidade. O ideal é que estivessem com livre acesso por parte da sociedade e seus dados fossem igualmente disponibilizados em formatos abertos.
Estes números são fundamentais para revelar a falácia do discurso da prefeitura de Salvador sobre mobilidade urbana. Se tivéssemos ainda mais dados, poderíamos elaborar diagnósticos muito mais detalhados e precisos, permitindo que as políticas públicas de mobilidade fossem criticadas, repensadas e desenvolvidas a partir de dados e evidências, com ampla participação e decisão da sociedade, independente dos interesses das empresas de ônibus que prestam serviço à população de Salvador.
Nota:
[1] A Integra é a reunião das empresas que exploram o serviço público de transporte coletivo por ônibus em Salvador. Originalmente formada por três consórcios, com a falência da Concessionária Salvador Norte (ônibus azuis), restaram apenas duas (ônibus amarelos e ônibus verdes). Na prática, a Integra é uma repaginação do SETPS, o Sindicato das Empresas de Ônibus de Salvador que monopolizou o serviço por décadas.
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