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Da Casa Para o Trabalho, do Trabalho Para Casa

Atualizado: 17 de jun.

As opressões do passado e do presente são os principais urbanistas das cidades. Por Tássio Silva[1]

Projeto QUALISalvador - Qualidade do Ambiente Urbana de Salvador (2022).

Há consenso entre os/as pesquisadores/as do urbano ao afirmar que o espaço é composto por dicotomias e contradições, diante da variedade das condições físico-ambientais e socioculturais que se expressam e materializam no chão. Uma mesma cidade aparenta ser várias. Fruto de acúmulos passados, coloniais e racistas, a desigualdade territorial invariavelmente se expressa, mentenecessariamente, social e racialmente, e se potencializa em decorrência de processos como o neoliberalismo, a privatização da gestão urbana e a ausência da constituição de espaços institucionais de participação social.

Não por acaso, são em determinados lugares “centrais” que estão concentrados os equipamentos e serviços públicos de saúde, educação, saneamento básico, lazer etc. adequados. Ao mesmo tempo, as “periferias” passam por um perverso processo de vulnerabilização, uma vez que lhes são negados direitos humanos, sociais e constitucionais. A divisão centro-periferia nem sempre é geográfica, mas sempre é social e racial.

Centro-Periferia

Bairro nobre-Favela

Cidade moderna-Cidade precária

Asfalto-Morro

Lugar de branco-Lugar de negro

Casa grande-Senzala


As opressões do passado e do presente são os principais urbanistas das cidades, visto que, a partir da segregação socioespacial e racial (leia-se apartheid), as escassezes de acessos, gentrificação, criminalização dos territórios negros e das ocupações de movimentos sociais, concentração das mortes evitáveis e pela violência policial, entre outras, elas se retroalimentam (Berth, 2023).

Prefeitura Municipal de Salvador e Pereira et al. (2019). IN: Galindo e Júnior (2021).

Nessa direção, a mobilidade urbana se manifesta, antes de qualquer outra coisa, como um “instrumento de controle de corpos”[2], que dita quem pode estar em determinados espaços, onde, quando e sob quais condições (Berth, 2023). As periferias, as favelas, as cidades precárias, os morros, os lugares de negros, as Zonas Especiais de Interesse Social, todos se defrontam, direta e diariamente, com as impossibilidades e dificuldades (re)criadas pela ausência de intersecção entre a mobilidade urbana e a garantia de direitos e liberdades dos cidadãos e cidadãs.

O Projeto QUALISalvador - Qualidade do Ambiente Urbana de Salvador lança luzes sobre essa problemática, ao confirmar, por meio dos dados coletados na pesquisa de campo realizada entre 2019 e 2021, que existe uma sobreposição entre os lugares de negros e os lugares com os maiores tempos de deslocamento da casa para o trabalho. Os bairros que apresentam um maior número de pessoas que afirmaram despender mais de duas horas para completar esse percurso estão concentrados no Miolo e no Subúrbio Ferroviário.

Contraditoriamente, ainda que o maior número de moradores/as estejam nessas duas regiões, os postos de trabalhos formais estão localizados nos centros da cidade, isto é, centro tradicional, no novo centro - na região do Shopping da Bahia -, e no Centro Administrativo da Bahia (CAB) (Carvalho e Pereira, 2016). Mesmo alguns lugares predominantemente negros localizados na Orla Atlântica, como o Nordeste de Amaralina e o Vale das Pedrinhas, apresentam um tempo de deslocamento maior que os bairros do entorno, estes habitados pela classe média.

Todos os dias, as horas escoam no trânsito, nos deslocamentos de casa para o trabalho e do trabalho para casa: “perde-se tempo”. Perde-se a vida. Esse tempo poderia ser utilizado para o lazer, aumento das potencialidades e talentos individuais, capacitação pessoal e construção de memórias com famílias, vizinhança e amigos. É impossibilitado, logo, a conciliação com o direito à vida (Santos, 2011).

São justamente os/as trabalhadores/as que todos os dias “acordam cedo para o trabalho, colocam seu cordão de alho e seguem firme pra batalha” (BaianaSystem) em direção aos centros que garantem o funcionamento da cidade como um todo. São essas pessoas que executam tarefas e serviços essenciais. São garis, caixas de supermercado, porteiros, recepcionistas, auxiliares de serviços gerais, empregadas domésticas, etc., além de trabalhadores informais: camelôs, ambulantes, catadores/as de materiais recicláveis, diaristas. Tanto isso é verdade que se algum dia os/as moradores/as das “quebradas” não fizerem o fluxo, a cidade não acontece. Portanto, essa atribuição de superioridade aos bairros nobres, inclusive na palavra “nobre”, não se sustenta (Berth, 2023). Nobre é quem faz Salvador acontecer.

Quem garante o funcionamento da cidade?

Quando quem garante o funcionamento da cidade toma banho de mar?

“Como conciliar o direito à vida e as viagens cotidianas entre a casa e o trabalho que tomam horas e horas?” (Santos, 2011, p. 114)
“Qual o cidadão e cidadã que gasta em média quatro horas por dia se deslocando até o local de trabalho terá condições físicas e psicológicas para enfrentar o mesmo trajeto em busca de lazer e de infraestrutura que as áreas centrais oferecem, mesmo se tiver recursos para isso?” (Berth, 2023, p. 197)

Ainda segundo a pesquisa do Projeto QUALISalvador - Qualidade do Ambiente Urbana de Salvador, 34% das mulheres negras da cidade gastam mais de 60 minutos para concluir o trajeto da casa até o trabalho, enquanto apenas 20% dos homens brancos levam o mesmo tempo para tal. Isso revela que, quando a raça se intersecciona com o gênero, a opressão é exponencialmente potencializada. A pesquisa traz ainda uma informação bastante relevante: enquanto as mulheres negras se deslocam principalmente de transporte público e a pé, boa parte dos homens brancos utilizam o carro para seus deslocamentos.

O transporte público, do jeito que está atualmente organizado, intensifica as desigualdades, ainda mais se forem levados em conta a péssima qualidade, os atrasos e o preço. Partindo-se do valor da passagem de ônibus vigente em Salvador (R$4,90), e considerando uma pessoa que trabalha 26 dias por mês (excluídos os domingos), o custo com transporte corresponde a R$254,80, isto é, 19,30% do salário mínimo. Essa lógica prejudica sobretudo as mulheres negras, que estão na base da pirâmide socioeconômica e são quem garante o funcionamento da cidade.

Na contramão do bem-viver e na direção de uma ideia de desenvolvimento deturpada, o planejamento da gestão urbana prioriza a concretização de sistemas viários que facilitam o trajeto de carros. Um exemplo disso é o BRT, que sustenta um discurso de melhoria do transporte público, enquanto, na prática, privilegia a circulação do transporte privado individual (a quantidade de pistas não deixa dúvidas). Isso sem falar nas campanhas publicitárias que associam essa opção de mobilidade a poder e status (Berth, 2023).

Assim como o direito à moradia não pode ser confundido com ser proprietário de uma casa, o direito social ao transporte não pode ser confundido com ter carro ou apenas pegar um “buzu”. Por ser um mecanismo de acesso e fruição do direito à cidade, ele é o próprio direito à cidade, e deve ser dotado de qualidades e características que atendam à pluralidade de pessoas que integram essa coletividade. Para isso, a noção de justiça racial, social e de gênero precisa estar no âmago das políticas de mobilidade urbana, com o objetivo de construir uma cidade democrática. O transporte não pode continuar a ser mais um fator de opressão. Ele precisa ser o meio para trilhar o caminho de construção da cidadania, dignidade e emancipação.

Projeto QUALISalvador - Qualidade do Ambiente Urbana de Salvador (2022).
Projeto QUALISalvador - Qualidade do Ambiente Urbana de Salvador (2022).

Notas

[1] Tássio Silva é vivenciador e pesquisador da cidade, bacharel em Humanidades pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia e graduando em direito pela Faculdade de Direito da UFBA. Parte da Manifesta ColetivA, membro do Serviço de Apoio Jurídico da UFBA e integrante do Coletivo Resistência Preta.

[2] Bem como as abordagens policiais de pessoas negras em lugares predominantemente brancos. Recentemente, foi divulgado nas redes sociais um vídeo em que três jovens negros são abordados, de maneira extremamente violenta, por policiais fortemente armados no bairro da Barra, Salvador.


Referências Bibliográficas

BERTH, Joice. Se a cidade fosse nossa: racismos, falocentrismos e opressões nas cidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.

CARVALHO, Inaiá; PEREIRA, Gilberto. Estrutura social e organização social do território na Região Metropolitana de Salvador. IN: CARVALHO, Inaiá. PEREIRA, Gilberto. Salvador: transformações na ordem urbana [recurso eletrônico]: metrópoles: território, coesão social e governança democrática. Rio de Janeiro: Letra Capital : Observatório das Metrópoles, 2014.

GALINDO, Ernesto; JÚNIOR, Jorge. A Cor da Moradia: apontamentos sobre raça, habitação e pandemia. Boletim de Análise Político-Institucional, n. 26, 2021.

SANTOS, Milton. O espaço da cidadania e outras reflexões / Milton Santos; organizado por Elisiane da Silva; Gervásio Rodrigo Neves; Liana Bach Martins. – Porto Alegre: Fundação Ulysses Guimarães, 2011. (Coleção O Pensamento Político Brasileiro; v.3).

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