Neste momento é preciso furar o bloqueio midiático que impede que chegue a mais pessoas a crítica à escalada autoritária e privatista promovida pelo governador Rui Costa. Por Daniel Caribé
Publicado no Passa Palavra
Estamos entrando na fase decisiva da luta contra o monotrilho que, caso sejamos derrotados, será construído no Subúrbio Ferroviário de Salvador. O problema: pouca gente está sabendo o que se passa.
Parece que os grandes canais de comunicação estão definitivamente fechados para as lutas sociais e qualquer denúncia contra os poderes estabelecidos não consegue ultrapassar o território afetado ou o conjunto de trabalhadores mobilizados.
Mas este texto não é para chorar pela velha indiferença, ou aparelhamento, dos meios de comunicação. Se eles acham que não vale o esforço de divulgar a remoção forçada de quase 400 famílias sem direito a uma indenização digna, ou a desnecessária destruição do centenário Trem do Subúrbio, meio de transporte usado pelos trabalhadores mais precarizados desta cidade, faremos nós.
É muito difícil escolher o que há de mais assombroso na “obra tamanho G” — que é como o mandatário da Bahia, Rui Costa, apelidou as intervenções do seu governo — do monotrilho que substituirá o Trem do Subúrbio e é a grande responsável pelas remoções forçadas e pelo aumento do insulamento (ou imobilidade urbana) dos moradores do aglomerados de bairros que compõem o Subúrbio Ferroviário de Salvador.
Problemas legais, técnicos, conceituais, ambientais, paisagísticos, patrimoniais, orçamentários e, claro, políticos, raciais e sociais caracterizam a desastrosa intervenção.
Para contextualizar, o edital lançado em 2017 previa a construção de um VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos), porém a licitação que se seguiu foi deserta: as empreiteiras nacionais não aceitaram construir o modal por conta do fechamento das torneiras do BNDES após a Lava Jato. E o que aconteceu? O Governo da Bahia “vendeu” a proposta para empreiteiras chinesas, que por sua vez fizeram uma imposição: ou vai ser o monotrilho ou não vai ser nada. Usaram do mesmo edital que previa uma coisa para construir outra, caracterizando uma ilegalidade.
Ora, qualquer um sabe que monotrilho não é VLT, pois o monotrilho de leve não tem nada; pelo contrário, ele é uma estrutura pesada de concreto, que correrá em Salvador entre 3 e 5 metros do solo, passando por cima de bairros cheios de problemas de infraestrutura, com destaque para o saneamento básico, e cortando a orla da Baía de Todos os Santos do Subúrbio Ferroviário de Salvador até alcançar o bairro do Comércio, passando por onde ainda há os trilhos do trem, alterando a paisagem, destruindo os modos de vida estabelecidos logo abaixo.
Enquanto o VLT possibilitaria a coexistência de dois modais, ou seja, o compartilhamento dos trilhos entre um trem para cargas e passageiros e o próprio VLT exclusivo para passageiros, com um menor custo e com menor impacto, permitindo entre outras coisas a cobrança de tarifas mais próximas da realidade local, o monotrilho destrói qualquer possibilidade de integração férrea de Salvador com as demais cidades e altera drasticamente a paisagem.
Os trilhos ainda existem, porém não por muito tempo, pois a desativação do trem estava programada para fevereiro de 2020 e foi reprogramada para março do mesmo ano devido à ausência de licenças do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, uma autarquia do Governo Federal) e da Prefeitura de Salvador (gerida por um partido de oposição ao governo do estado baiano) que ainda não foram concedidas à concessionária “vencedora” da questionada licitação. É claro que essas licenças sairão mais cedo ou mais tarde, e se não for através da vontade dos órgãos competentes, será através da intervenção do judiciário baiano.
É importante ressaltar que as empresas chinesas têm muitos interesses aqui, e além desse monotrilho, a ponte Salvador-Itaparica também será construída por elas, apesar de todos os questionamentos. E ainda temos o Consórcio Nordeste, a articulação entre os governadores nordestinos, dando os seus primeiros passos e provavelmente abrindo um grande mercado para as empreiteiras e demais empresários sob a batuta do Capitalismo de Estado chinês. Trata-se de uma relação bem obscura de subordinação na qual boa parte do orçamento do estado da Bahia está sendo direcionado para as PPP (Parcerias Público-Privadas) enquanto o governo vende imóveis, patrimônios, realiza apressada e autoritariamente a reforma da previdência, sucateia serviços e equipamentos públicos básicos, arrocha os salários dos servidores, entre outras medidas, para fechar a conta e poder pagar em dia os investidores. Após esses dois projetos, o monotrilho e a ponte Salvador-Itaparica, o governador Rui Costa passou a ter uma postura ainda mais autoritária contra todos aqueles que o questionam, além de acelerar os processos de privatização já em curso.
Entretanto, o que importa agora é dar visibilidade a dois grupos em especial: as famílias removidas (quase 400 de início) e os usuários do Trem do Subúrbio (mais de 50 mil viagens semanais, mesmo com os trens e estações completamente sucateados, sem manutenção, com acidentes e paralisações frequentes).
As desapropriações estão sendo feitas com muito autoritarismo. As casas de centenas de moradores do Subúrbio Ferroviário amanheceram pichadas (a forma escolhida pelo governo e concessionária para marcar quem terá de sair dos seus imóveis), disseminando o terror e, mesmo com todos os questionamentos dos moradores locais, ainda não há nenhum plano de reassentamento, nenhum programa social ou de habitação previsto e os valores das indenizações são irrisórios, utilizando-se de metodologias ultrapassadas.
Quanto à desativação definitiva do trem — sim, o trem centenário do Subúrbio de Salvador, que já transportou mais de 40 mil passageiros por dia, ligando Salvador ao interior do Estado, entre outros destinos, sumirá para sempre —, ela vem sendo acompanhada do silêncio, como se aquele patrimônio fosse de menor importância ou não pudesse ser recuperado para melhor atender à população local. Os moradores do Subúrbio Ferroviário de Salvador ficarão sem uma alternativa durante os dois anos da obra, pois não há nenhum plano para dar conta da interrupção, além de terem de pagar uma tarifa oito vezes mais cara (saindo de 50 centavos e indo para 4 reais). O insulamento que se dava “apenas” por conta da renda das famílias, agora se dará também por causa da ausência de meios de transporte.
Há outros dois grupos que serão drasticamente atingidos: os trabalhadores que dependem dos trens para comercializar os seus produtos e que não poderão adentrar no monotrilho — a exemplo dos pescadores, marisqueiras, artesãos e demais trabalhadores que saem muito bem nas fotografias e nos vídeos promocionais dos governos destinados aos turistas; e os comerciantes populares que têm seus clientes e empregados trazidos e levados cotidianamente pelos trens, em especial os empreendimentos da Calçada e Feira de São Joaquim, mas há muitos outros ao longo da linha férrea. Temos poucos dados sobre eles, mas são públicos também vulneráveis frente ao poder do governo do Estado em conjunto com as empreiteiras chinesas.
Contra tudo isso, em fevereiro, aconteceu a Escola de Verão, uma articulação de resistências envolvendo associações de moradores do Subúrbio Ferroviário, movimentos sociais, coletivos, grupos de pesquisa da universidade e lideranças locais. É essa articulação que tenta manter vivas a memória do trem (exigindo a sua recuperação), a defesa de um VLT de verdade e a luta contra o monotrilho, ajudando a dar visibilidade, apesar de ainda pequena, às famílias destinadas a serem desapropriadas e aos usuários do trem que perderão o modal financeiramente acessível.
Tudo isso ainda é insuficiente para barrar o monotrilho e obrigar o governo do estado a construir o VLT em articulação com a recuperação do trem, não por culpa daqueles que resistem, mas devido à indiferença que tomou conta de todos. Neste momento é preciso furar o bloqueio midiático que impede que chegue a mais pessoas a crítica à escalada autoritária e privatista promovida pelo governador Rui Costa, mas também é necessário se somar aos movimentos, associações e coletivos que prometem não deixar o monotrilho passar, literalmente, sobre as nossas cabeças.
Comments